quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma boa dose de Wolffenbüttel

É, Vendell, mano véi, vamos tomar uma dose de Wolffenbüttel e continuar esse papo:
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(...)e os patrões diziam todo dia: "O senhor precisa trabalhar mais. A maioria das coisas que escreve não é aproveitada. Não precisa se explicar, já sabemos. Vai dizer que não faz outra coisa que não seja escrever. Não queremos saber de nada, não queremos saber de nada, não queremos saber de nada." E a arte do afastamento vivencial continuava em casa: "O quilo de carne está custando tanto, o leite em pó está muito caro. Quando o bebê nascer não poderemos continuar misturando água com leite."
Os meses passavam rapidamente. Tão rapidamente como o dinheiro que saía do meu bolso para os bolsos de açougueiros, médicos, quitandeiros, padeiros, dentistas, cobradores. Os cobradores, de um modo geral, eram de livros. E era tão fácil vender-me livros. Diziam que era fácil pagar. E eu acreditava. Dinheiro.
Às vezes chegava em casa tarde da noite e encontrava a minha mulherzinha dormindo. Uma criança de menos de vnte anos, lindas pernas, lindo busto, querendo apenas aprender a arte de viver mais simplesmente; não querendo atacar convenções mas aceitando verdades absolutas que ainda não haviam começado a esquartejá-la. Eu tirava meu terno suado e tentava me lavar, mas faltava água. Em silêncio, para não acordá-la, deitava-me na cama. Ela precisava de tanto amor e carinho mas estaria eu em condições de dar-lhe esse amor e esse carinho? Também era uma criança tentando jogar fora de casa um jogo muito perigoso. E era eu que ela pretendia ter como professor de vida! Como ousar beijá-la se durante todo o dia eu nada mais fizera senão fracassar? Como ousar ter desejo, sentir o sexo, com tanta culpa? Medo de tocá-la, medo de não poder amá-la e, ainda assim, amando-a com toda intensidade. Como explicar-lhe a minha falta de condições para o jogo do dinheiro que é o jogo da vida? Naquele silêncio, feito de calor, suor e noite, eu sentia intensamente a ausência de Deus e sofria com sua ausência, pois toda a responsabilidade do que ocorreria daquele momento em diante era minha. E faltava-me força para suportar o peso da minha ignorância. Chorar também não podia, pois ela acabaria acordando e como explicar as minhas lágrimas se elas existiam independentes da minha vontade? Como dizer-lhe: "Meu amor, a culpa é desses filhosdasputas que tiveram a sorte de nascer filhosdasputas; que tiveram a sorte de nascer acreditando que o mundo é assim mesmo. Dinheiro, meu amor é a palavra de ordem, é o único deus, cruel, escatológico, o GRANDE DEUS GRANA. Para não chorar é preciso ajoelhar-se aos seus pés. É por falta de dinheiro que estou brocha esta noite."
Também não podia dizer-lhe isto, pois ouviria a sua verdade adolescente e justa:
—Mas, meu amor, você não pode brigar com todos. O dinheiro não faz mal algum. Papai trabalha, todos trabalham.
Eu dei o azar, esta é que é a verdade e digo isso consciente do uísque no bucho, de, apesar da pressão emocional dos adultos, crescer me interrogando. Descobri que o que é bom para a autoridade transcendental, seja ela pai, mãe, professor, polícia ou patrão, não é bom pra mim. Não me deixaram ser um cachorro. Alguma autoridade transcendental que dorme dentro de mim não me deixou ser um cachorro e eu queria tanto ser um, um bom cachorro, um cachorro elegante, um cachorro fudedor, um cachorro gigolô, um cachorro de automóvel com algumas viagens a Paris e a Nova York, um cachorro bom para a autoridade, pois que serve à autoridade. Mas eu mordo, sou um mau cachorro e não tenho talento para pedir desculpas. Se o bom Deus existe, certamente, me faltou quando lhe pedi que me transformasse num cachorro como os outros. Se o bom Deus existe, me condenou à humanidade.
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Trecho do clássico À Mão Esquerda do mestre Fausto Wolff.

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1 Comentários:

Blogger Wendell Augusto disse...

É meu caro, um texto que mostra realmente como é a vida, o cotidiano de muitos que aqui estão.
É triste, mas verdadeiro!!!

13 de maio de 2009 às 21:18  

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