sábado, 21 de fevereiro de 2009

RECEITAS ANTITÉDIO CARNAVALESCO

Em 22 de fevereiro de 1993, Hilda Hilst publicou o seguinte trecho do livro "Contos D´Escárnio - Textos Grotescos" em sua coluna no Caderno C do jornal diário Correio Popular de Campinas.
RECEITAS ANTITÉDIO CARNAVALESCO
Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para durante o carnaval:

I
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:

Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileiro
E poeta.
Quem te ouvir vai ficar besta.

II
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora.
III
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a
de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.
IV
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que "trufas não tem não, amorzinho".
V
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).
VI
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome científico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.
VII
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tintas fosforecentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!
VIII
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não pule esta.)
Faça um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus amigos mais íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antônio para o povão era, na "tua" tradução, "Emprestai-me vossas orelhas". Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que "Lend me your ears" quer dizer isso mesmo.
IX
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado do seu revólver. em seguida, coloque a pedrinha de cânfora de baixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça.) *
*Trecho do livro Contos D´Escárnio - Textos Grotescos de Hilda Hilst.
Crônica presente no livro "Cascos & Carícias & Outras Crônicas".

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