Mais pelo Aniversário do Fausto Wolff - "Tempo Esquecido"
Texto do Fausto, originalmente publicado no JB, em 20/07/2008 e encontrado no O LOBO.
Tempo esquecido
Para mim, os adultos eram criaturas muito estranhas.
Continuam sendo, mas aprendi a usar a máscara de javali para passar despercebido entre eles. Faço isso ainda hoje. Meus mestres foram dois ingleses: Jonathan Swift e Daniel Defoe. Como nosso corpo e todo o universo, também o nosso destino é composto de átomos que vivem se chocando harmoniosamente entre eles, na maioria das vezes.
Quis o destino que meu pai fizesse um mau negócio e a família toda acabou no meio de um favelão em Porto Alegre. Morávamos na única casa de alvenaria da região. Muito chique, mas o banheiro, ou casinha, ficava a uns 200 metros da moradia. Depois era tudo mato. Garoto, rezava e pedia a Deus que me desse qualquer outra profissão que não a do homem do barrilzinho, ou seja, o empregado da prefeitura que vinha apanhar as excreções humanas nas "casinhas" do bairro. No quarto onde dormia com meus irmãos, encontrei dois livros esquecidos pelos antigos moradores: As viagens de Gulliver e As aventuras de Robinson Crusoé, em versão juvenil da minha querida Editora e Livraria do Globo. Praticamente decorei os dois volumes em menos de seis meses. Graças a eles, aos 7 anos de vida começava a me preparar para a grande aventura do mito que ocorre sempre que um jovem herói deixa a casa dos pais para atravessar mares, matar dragões, morrer na tentativa ou retornar vitorioso ao velho lar. Meus dois mestres ensinaram-me a reconhecer a voz do horizonte. Mentiria se não dissesse que um terceiro mestre, o meu pai, não deu seu incentivo através de esporádicas surras. Escravo, como todos os outros da sua classe, ele voltava para casa esmagado pela luta diária que insistia em manter contra uma realidade gigantescamente superior a ele e que ele não venceria nunca. Quando voltava do trabalho (era barbeiro) minha mãe informava-o das minhas molecagens – não ajudá-la no trabalho caseiro e ficar a tarde inteira lendo no mato. O velho, como o chamava, embora não tivesse 40 anos, me cobria de cintadas. A velha interferia: "Pára com isso, seu maluco! Quer matar o menino?" Ele parava e, ao fim de alguns minutos, estávamos todos abraçados, rindo e chorando ao mesmo tempo. Foi por isso que no início deste escrito confessei minha impossibilidade de entender os adultos. Com o tempo, meu pai morreu, minha mãe morreu e jamais deixei de amá-los.
Da mesma forma, jamais deixei de lutar com todas as minhas forças para escapar de casa e descobrir o mundo. Menos de um ano depois de travar conhecimento com father Swift e Mr. Defoe, meu pai fez um outro mau negócio e nos mudamos de Montserrat, que hoje é o bairro mais chique de Porto Alegre. Coisas da vida. Viajei, eventualmente aprendi. Para cada porre, um tombo. Anotados o local do tombo, a posição dos espinhos na estrada, a dimensão do vexame, continuava a aventura. Sempre em hotéis de segunda, trens de segunda, restaurantes de segunda. Eventualmente, cheguei à terça-feira, mas isso se deveu mais à piedade de algumas mulheres do que ao meu talento. Mulheres como aquela que me ajudou a fugir de Palermo, na Sicília, logo depois que participei de um comício do Partido Comunista Italiano, o que era quase pedir para ser assassinado. Estive em algumas guerras, casei algumas vezes, tive filhos e netos, escrevi milhares de artigos e duas dúzias de livros, mas nunca esmoreci da certeza de que o significado da vida está sempre um pouco além do horizonte.
Há algum tempo, aborrecido com as cruéis mesquinharias neoliberais do dia-a-dia, dei-me conta de que, como herói, era um fracasso. Não estava preparado para a morte, pois ainda não descobrira do que tratava a vida. Não queria aceitar que toda a nossa existência não passa de vaidade e autopiedade. Arranjei dinheiro emprestado – a altos juros –, peguei minha mulher pelo braços, partimos para um cruzeiro da CVC – Pulman Tours, a bordo do liner Blue Dream. Partimos para o fim do mundo, mais precisamente para a cidadezinha argentina de Ushuaia, que disputa com Punta Arenas no Chile (onde Neruda andou exilado na própria pátria) pelo título de terra povoada mais próxima do Pólo Sul. Por via das dúvidas, estivemos nas duas, para não falar de Port Stanley, capital das Malvinas. Como o capitão Ahab, de Moby Dick, de Herman Melville, eu queria descobrir com qual monstro me assemelho no ventre de uma baleia. Voltarei ao assunto.
P.S.: Talvez vocês estejam se perguntando sobre minha irresponsabilidade de pedir dinheiro emprestado apenas para saber por que existo, em vez de dar entrada em um apartamento sala-quitinete em Cordovil. Acontece que tenho 67 anos e não gostaria que a tétrica senhora me apanhasse em plena ignorância.
Fausto Wolff
JB, 20 de julho de 2008.
Da mesma forma, jamais deixei de lutar com todas as minhas forças para escapar de casa e descobrir o mundo. Menos de um ano depois de travar conhecimento com father Swift e Mr. Defoe, meu pai fez um outro mau negócio e nos mudamos de Montserrat, que hoje é o bairro mais chique de Porto Alegre. Coisas da vida. Viajei, eventualmente aprendi. Para cada porre, um tombo. Anotados o local do tombo, a posição dos espinhos na estrada, a dimensão do vexame, continuava a aventura. Sempre em hotéis de segunda, trens de segunda, restaurantes de segunda. Eventualmente, cheguei à terça-feira, mas isso se deveu mais à piedade de algumas mulheres do que ao meu talento. Mulheres como aquela que me ajudou a fugir de Palermo, na Sicília, logo depois que participei de um comício do Partido Comunista Italiano, o que era quase pedir para ser assassinado. Estive em algumas guerras, casei algumas vezes, tive filhos e netos, escrevi milhares de artigos e duas dúzias de livros, mas nunca esmoreci da certeza de que o significado da vida está sempre um pouco além do horizonte.
Há algum tempo, aborrecido com as cruéis mesquinharias neoliberais do dia-a-dia, dei-me conta de que, como herói, era um fracasso. Não estava preparado para a morte, pois ainda não descobrira do que tratava a vida. Não queria aceitar que toda a nossa existência não passa de vaidade e autopiedade. Arranjei dinheiro emprestado – a altos juros –, peguei minha mulher pelo braços, partimos para um cruzeiro da CVC – Pulman Tours, a bordo do liner Blue Dream. Partimos para o fim do mundo, mais precisamente para a cidadezinha argentina de Ushuaia, que disputa com Punta Arenas no Chile (onde Neruda andou exilado na própria pátria) pelo título de terra povoada mais próxima do Pólo Sul. Por via das dúvidas, estivemos nas duas, para não falar de Port Stanley, capital das Malvinas. Como o capitão Ahab, de Moby Dick, de Herman Melville, eu queria descobrir com qual monstro me assemelho no ventre de uma baleia. Voltarei ao assunto.
P.S.: Talvez vocês estejam se perguntando sobre minha irresponsabilidade de pedir dinheiro emprestado apenas para saber por que existo, em vez de dar entrada em um apartamento sala-quitinete em Cordovil. Acontece que tenho 67 anos e não gostaria que a tétrica senhora me apanhasse em plena ignorância.
Fausto Wolff
JB, 20 de julho de 2008.
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