Vinagre e Poesia
No mês de junho, dezenas de cidades e capitais brasileiras tiveram suas ruas tomadas por gente gritando pelo direito ao transporte público. Motivados pelo aumento da tarifa em todo país, milhares de pessoas enfrentaram o asfalto para dar voz às suas causas. Inspirado pelas manifestações ao redor do país, um coletivo de poetas lançou, na internet, a coletânea Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos, obra organizada pelo escritor Fabiano Calixto.
Logo nas primeiras páginas, o grupo anuncia seu propósito. “Por uma poética de trincheiras & quebradas: nós, Os Vândalos, apresentamos a coletânea. Feita por Todos”. A autoria é coletiva e os poetas vêm de todos os cantos do Brasil, de norte a sul. “Até por serem textos que chegaram via internet, não dá para traçar, imediatamente, um mapa de estados e cidades que participaram”, afirma Fabiano.
Ele explica que o processo de criação se deu muito rápido: a ideia surgiu numa sexta-feira, no fim de semana receberam e diagramaram todos os textos e na segunda a antologia já estava disponível para download. “Aconteceu no ritmo da internet, no calor dos acontecimentos, para ter certeza de que o material seria fresco e atual.” A coletânea já ganhou uma segunda edição ampliada.
Em entrevista ao site da revista CULT, o grupo falou sobre a obra e o papel da arte como forma de contestação.
CULT – Logo no prólogo vocês afirmam que “o que está acontecendo pelas ruas do Brasil diz respeito a um berro geral”. Como a arte, especificamente a literatura, é capaz de potencializar essa voz?
Os Vândalos - A poesia é algo muito próximo ao berro, também ao murmúrio. Ela é lida com uma dimensão entre o não sentido e o sentido, entre a infância e a voz, entre o corporal e o linguístico, entre o bio-a-lógico e a linguagem, entre o pré-linguístico e o linguageiro. Nela, um se tenciona pelo outro, sem poder nem querer abrir mão de nenhum dos dois. Se os poetas não entenderam propriamente o que está acontecendo, muitos deles entenderam, desde o começo – ao se posicionarem como participantes ou simpatizantes do movimento e ao escreverem a partir da experiência e/ou do pensamento, como mostra a antologia -, a diagonal de força do que está acontecendo, contrariamente aos políticos que, ancorados em seus estereótipos, não souberam lidar com o desconcertante da situação, com a instabilidade entre o sentido e o não sentido do que está acontecendo. Mas tal tensão, que a maioria dos políticos de nosso tempo parece ter perdido, seria exatamente o fundamento da política, o que, ainda em nosso tempo, significa dizer que a política tem de se recuperar pela sua encruzilhada com a poesia. O acuamento dos políticos (alguns deles em quem se tinha as melhores expectativas) em seus gabinetes, alinhados aos piores momentos da polícia por eles mesmos ordenada, se contrapõe com a participação imediata de poetas nas ruas ou compactuando com o que se passa nas ruas, com o desejo de escrita, com o desejo de intervenção, com o desejo de compreensão possível, com os afetos e as vidas ali implicados. Para usar o fim de sua pergunta, poetas estão certamente empenhados em ecoar, como podem, as potencialidades das vozes vindas das ruas, que são também as suas vozes. É o que a antologia busca mostrar.
Vocês incorporam o título de “vândalos” como uma assinatura do coletivo. Desde o início das manifestações, ela tem sido usada numa tentativa de desqualificar o movimento. Por que vocês escolheram essa alcunha e qual é o sentido que atribuem a ela?
Essa coisa de se apropriar de um termo e torná-lo outra coisa é típico da poesia. O discurso oficial usava o termo “vândalo” como desqualificante dos manifestantes – mas também o poeta é um vândalo dos significados. Ele pega as palavras e as destrói, constrói a partir delas outros significados possíveis. Fizemos o mesmo com o Vândalo: de um signo de destruição da propriedade privada, o vândalo passa a ser um reconstrutor, alguém que faz parte da dialética natural e que é fundamental para a reconstrução do nosso país.
Em que momento vocês decidiram criar Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos? Dentro do quadro geral, houve algum fato específico responsável pelo surgimento das primeiras ideias?
Havia corrente uma insatisfação com a falta de manifestação da classe artística em relação aos fatos recentes. Muito escritor, cantor e artista que sempre se disse de vanguarda, mas que, diante de uma manifestação que atinge símbolos do grande capital como bancos e a grande mídia, preferiram se calar por medo de perder seus patrocínios. Também havia, artisticamente, um desejo de trocar as frases clássicas de Brecht e afins por textos de poetas atuais e atuantes. Queríamos dar voz a uma classe artística que não se sentia representada pelo status quo literário e que queria poder se expressar quanto a esses acontecimentos. Por isso surgiu a ideia de fazer a antologia: para chamar essas pessoas e dar a elas um instrumento unificador de vozes que dissesse que nós, poetas, não iríamos nos calar diante dos absurdos que ocorreram.
Os protestos se articularam, principalmente, por meio da internet e das redes sociais. Esta também foi o meio que vocês escolheram para divulgar a obra. De que forma vocês acreditam que a internet altera o modo como as pessoas se organizam e se comunicam? Nestes dias de urgência, a literatura tem que chegar. E aqui a gente aproveita pra fazer uma homenagem a tantos poetas panfletários, mimeografários, declamadores, que nunca descuidaram desta urgência: que o poema chegue. A internet faz com que os poemas se espalhem com muita rapidez – quando se manda o link, a sensação é a de um pavio que começa a queimar. A interação entre poetas também é quase imediata: é possível acionar uma rede grande em poucas horas, incluindo ilustradores, diagramadores, revisores. Não apenas é viável a obra colaborativa, mas é feita com gente muito capaz, com muita qualidade e de forma extremamente célere. É o momento em que todos se reúnem em prol do impossível.
A principal alteração que a internet traz é que todos podem narrar. Todos podem expressar as suas verdades. Algo bem tocante. Entretanto, o peso de cada opinião é ainda balizado por instituições bem tradicionais.
A principal alteração que a internet traz é que todos podem narrar. Todos podem expressar as suas verdades. Algo bem tocante. Entretanto, o peso de cada opinião é ainda balizado por instituições bem tradicionais.
No prólogo, vocês também afirmam que “há um hiato tensivo crescente entre as pessoas e o poder”. A literatura é uma forma de aumentar ou abrandar essa tensão?
A poesia é muito hábil em impotências, força que ela conhece como poucos. Desde sua impotência, ela pode mostrar a violência de como os poderes se estabelecem, de como eles se exercem, de como eles se afastam de quem eles deveriam estar próximos. Assim, a impotência da poesia se confunde com sua extrema potência. A poesia não aumenta nem abranda tal tensão, ela a evidencia, ela permanece nesse meio, não a deixando ser escamoteada. Claro que, de dentro desse hiato, todos nós trabalhamos por sua garantia, mas queremos também uma porosidade maior do poder para com as pessoas, de modo que o poder de fato represente os anseios materiais e imateriais das pessoas, favorecendo-os ou beneficiando-as. Em que grau será isso possível? O preço que, no momento, estamos pagando no Brasil é tanto em nome da sustentação do hiato quanto da porosidade.
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