É...
Cena IV do 1º Ato da peça "É..." de Millôr Fernandes, il miglior fabbro, que se foi na última terça feira, dia 27/03/2012. Esta obra teatral está disponível para download no site dele.
LUDMILA: (Para Mário.) Você não acha isso bom?
OTO: Você acha que eu tenho alguma responsabilidade?
CENA IV : JANTAR
(Luz que vai subindo, bem lentamente, em resistência. No escuro ainda se ouve o ruído de copos e talheres e o bruáá final de jantar. Quando a luz chega ao normal vê-se Vera, Mário, Sara, Oto e Ludmila acabando de jantar. Vera se levanta, pega dois pratos. Mário se levanta também. Sara ajuda Vera. Ludmila tenta ajudar, Sara não deixa.)
VERA-NARRADORA: Uma semana depois. (Entra na cozinha, sai logo.)
SARA: (Tira alguma coisa das mãos de Ludmila.) Deixa; eu levo. (Entra empregada, tira outras coisas da mesa.)
VERA: (Em pé; para Oto que se senta. Bebe alguma coisa.) Eu vivo dizendo que não é comigo: sou carta fora do baralho. Mas a emancipação não está promovendo, antes de tudo, a irresponsabilidade masculina?
LUDMILA: (Para Mário.) Você não acha isso bom?
MÁRIO: Magnífico. Mas a intenção era mesmo essa ou isso foi descoberto por acaso, como o Brasil?
LUDMILA: (Irônica) O acaso é uma explicação que a nossa ignorância dá à nossa vaidade. Não é assim que dizia Santo Agostinho? (Sara entra e senta também.)
MÁRIO: Falando de coisas vivas, Oto; como é que você defende o nosso amedrontado machismo diante dessa beleza de moça tão independente e tão segura?
LUDMILA: Eu, segura? Coitadinha de mim. Só da boca pra fora. Qualquer Jesse Valadão desses por aí me faz tremer na base.
OTO: Você acha que eu tenho alguma responsabilidade?
MÁRIO: Acho, claro. É fundamental uma responsabilidade tua com relação a ela e vice-versa. Só assim o casal se protege das sacanagens de um contra o outro. Senão você cai num liberacionismo doidão e o mais fraco dos dois, ó (bate com a mão espalmada na outra mão fechada, gesto clássico) toma na tarraqueta. E o mais fraco é sempre o homem. Sem regras não há jogo. Eu acho que a coexistência perfeita entre homem e mulher só vai existir quando os dois aceitarem que há diferenças fundamentais entre homem e mulher. Não há dois bichos mais diferentes na face da terra.
LUDMILA: Quer dizer, meu professor, que no momento exato em que as moças rejeitam um destino biológico você sugere que elas voltem a aceitar isso?
MÁRIO: Não é só o destino da mulher que é biológico – o do homem também. Porque é feito de material mais pesado e tem dentro da barriga menos peças de relógio, foi sempre a tarefa dele sair de casa todo dia, no vento e na chuva, procurando o rinoceronte onde quer que ele estivesse.
LUDMILA: (Sempre gozando) “O marido é teu senhor, tua vida, teu protetor, teu chefe e soberano. É quem cuida de tí e, para manter-te, submete seu corpo a trabalho penoso seja em terra ou no mar. Sofrendo a tempestade à noite, de dia o frio, enquanto dormes no teu leito morno, salva e segura, segura e salva.” William Shakespeare. Megera Domada. Quem fala é Catarina, a megera domada. Agora eu pergunto: Por que o homem não aproveitou a caça ao rinoceronte e se mandou de vez?
MÁRIO: Algumas vezes se mandou. Poucas. E sempre sentiu a necessidade de voltar.
LUDMILA: Necessidade ou obrigação?
LUDMILA: Necessidade ou obrigação?
MÁRIO: Condicionamento. Voltar é a palavra mais usada em todas as canções desde que o homem – perdão, o ser humano – inventou a canção. Desde que o Filho Pródigo voltou e foi festejado com um vitelo gordo, as mulheres nunca mais deixaram de puxar o saco dos grandes voltadores, prendendo o homem na mística da volta. De Alexandre a Mac Arthur, passando por Marco Polo e todos os apaixonados que se ausentam, a maior promessa que as mulheres sempre exigiram dos homens foi: “Eu volto”.
LUDMILA: Você está invertendo a história: não são as Penélopes que se sacrificam esperando Ulisses. Ulisses é que é um pobre mártir voltando, vinte anos depois. Eu também acho. Pô, ficou vinte anos rodando pelas boates helênicas, comendo tudo quanto é sereia das ilhas gregas, não tinha nada que voltar pra chatura da família.
MÁRIO: Aí é que a porca torce o rabo. Não é chatura, a família. A volta só existe porque fora do seu próprio grupo familiar, da sua própria gente, não há glória nem graça. O verdadeiro herói volta para contar – ao pai, ao filho, primo, neto, esposa, tia. A mitologia grega é uma tremenda transa familiar. O herói sempre volta: pro desfile e a chuva de papel picadinho no meio de sua própria gente.
SARA: Oi!
LUDMILA: Viva! (Oto bate palmas brevemente.)
LUDMILA: Viva! (Oto bate palmas brevemente.)
VERA: Apoiado! (Se levanta, dá um beijinho em Mário.)
OTO: Você acha mesmo que a família ainda funciona? A tua não vale; é uma excessão.
MÁRIO: O que acontece é que a família caiu em desgraça. Agora é preciso ter muita coragem pra defender a idéia de que cumprir obrigações com os que nos cercam é um ato criativo e apaixonante. Todos nos dizem que, para sermos liberados, temos que evitar o próximo, ignorarmos a dor alheia individual e sobretudo... não lavar a louça. Por isso defender a família hoje é um ato suspeito. Preferimos todos fraternidades distantes, solidariedades remotas: ao Vietnã, à África Negra ou a qualquer grupo menos votado de necessitados. Servir e alimentar a família é coisa menor, sem charm, não é noticiado nem no Jornal Nacional da Tevê Globo. (Se levanta. A luz baixa sobre os outros. Ele vem ao proscênio.) O carinho entre marido e mulher, a disciplina imposta aos filhos para que aprendam a sobreviver na selva, os atos de modestas restrições diárias em favor de um tio ou afilhado, a aplicação profunda na tarefa rotineira, uma linha ética diante do grupo familiar – agora tudo isso nos dá a mesma vergonha que nos dava ser apanhados lendo uma revista pornográfica, dez anos atrás. Mas os mais pobres – não falo dos miseráveis – sabem que só podem se defender a partir da coesão e da proteção familiar, sua eterna hierarquia: Pai, mãe, filha, filho, avô, tios, primos, cunhados, noras, genros – uma constelação de afetos, crises, mortes, direitos, responsabilidades, chatices, lealdades. (Pausa) Quando a mulher se atribui...
LUDMILA: (Sai da semi-escuridão, vem para o proscênio. Enquanto Ludmila fala, Mário mergulha naturalmente na penumbra em que estão os outros. Acende cigarro, fuma, etc. Todos se comportam naturalmente, como se não a escutassem.) Quando a mulher se atribui o direito de sair do seu lugar, todas essas lealdades desaparecem e a constelação explode. É preciso, pra manter essa estrutura, que a gente aprenda a não competir com o homem, como esposa, irmã, tia, sobrinha – como empregada pode. A gente deve se educar cuidadosamente até atingir uma estupidez completa com relação a máquinas e idéias, conservando nossa sublime delicadeza, maciez de tecido, nossa sincera obediência, de preferência boquiaberta. (Recita gozadora.) “Por que razão o nosso corpo é liso, suave, delicado, não preparado para a fadiga e a confusão do mundo, senão para que o nosso coração e o nosso espírito tenham delicadeza igual ao exterior?” (Noutro tom.) Senão pra conservar melhor a nossa capacidade pra tudo que é trabalho chato, monótono e infindável? (Luz geral.)
OTO: Como escreveu um aluno meu, desses que gostam de enrolar: “A família é uma fórmula social buscando permanentizar a natural contingência das relações sexuais e sentimentais em benefício da estabilidade política, isto é, dos interesses econômicos das classes dominantes”. (Riem, sobriamente.)
VERA: Shaw disse de maneira mais simples: “Quando dois jovens estão apaixonados, num estado de exaltação febril e patológica, a sociedade bota diante deles um padre e um juiz e exige que eles permaneçam o resto da vida nesse estado anormal, deprimente e exaustivo.” (Risos)
MÁRIO: (Vem de novo, lentamente, fumando, ao proscênio, luz só sobre ele. Joga cigarro no chão. Pisa. Os outros no escuro.) As ideologias atuais, sempre falando em coletividades, na verdade estimulam o ego e o individualismo. Até o sistema capitalista, que necessita de trabalho competitivo, racionalismo e poupança, usa sua imensa máquina de propaganda, nos filmes, nos jornais, nas coca-colas, a favor da falsa aventura de viver, das viagens sem motivo, das mudanças sem propósito – o turismo organizado está aí mesmo. Ficou mais fácil ir ver in loco a muralha da China do que conhecer o subúrbio de Madureira. Enfrentar essa onda e gritar que a família ainda é a instituição mais profundamente humana é provocar graves suspeitas de reacionarismo. Mas veja o paradoxo: como indivíduos podemos escolher as nossas relações entre pessoas de nossa preferência, do mesmo gosto, com os mesmos interesses, mesmo nível cultural e até na mesma faixa de idade. Na família é que somos obrigados a enfrentar diferenças essenciais ao ser humano: um tio burro, uma irmã mesquinha, um cunhado bicha, um primo subversivo. Não escolhemos os pais e não temos a menor influência na forma do irmão. Pela família pagamos um supremo tributo à condição humana, ao parto, à doença, à roupa suja, à mediocridade de nós mesmos, à morte. A família nos lembra sempre que viemos do pó, a ele voltaremos e, pior, temos que limpá-lo dos móveis todo dia. (Nesse exato momento a empregada, com bandeja bonita, de prata, e aparelho brilhante igual, entra no foco de luz. O aparelho de café deve dar o tom digno, familiar, classe-média-elegante. Mário se volta para a semi-escuridão.) Cafezinho? (A luz geral se acende. Todos se movimentam com mais agilidade. Mário vai servindo, derramando café do bule nas xícaras, depois de botar açúcar. Vera apanha a dela, se servindo sozinha. Mário para Sara, se referindo ao açúcar.) Muito ou pouco?
SARA: Uma colherzinha. (Mário a serve. Ludmila conversa com Vera. Enquanto todos bebem a luz abaixa, em resistência.)
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