Nevermind Não Importa
Texto de André Forastieri extraído de http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2011/09/23/nevermind-nao-importa/ :
Nevermind foi saudado em 1991 como marco zero de uma nova era. Inspirou incontáveis tratados sobre como encapsulava à perfeição a anomia da geração X. Hoje, dá para enxergar o exato contrário: o Nirvana produziu uma lápide, ponto final da era anterior. Nevermind foi o último disco que importou.
Depois os álbuns não importaram mais, nem os roqueiros, nem a música. Ela deixou de ser o coração da cultura jovem. Foi substituída pela internet. Música no século 21 é trilha sonora para outras atividades. Tínhamos poucos vinis; eram caros e raros e valorizados e debatidos. Hoje carregamos milhares e milhares de música no bolso, temos à disposição na rede todas as canções jamais gravadas, e ouvimos cada uma duas, três vezes no máximo.
O Nirvana foi fundado em 1985. Era uma banda ética e conceitualmente punk na América de Reagan - potencial comercial zero. Cobain ficaria embasbacado com 2011, quando o principal sonho punk é nosso dia a dia. A alma do punk não era feita só de contestação (embora ela fosse fundamental, e meu, que saudades de arte do contra). O punk era fundamentalmente propositivo e empoderador. O lema punk era do it yourself, faça você mesmo, e faça já.
Não dependa dos outros, desconfie nas velhas maneiras de fazer as coisas, não embace, não se lamente. Qualquer um pode fazer música, fazer diferença, fazer diferente. Não tinha nada a ver com três acordes ou cabelo moicano. A máxima impregnou uma geração. Empoderados por novos instrumentos eletrônicos e técnicas digitais de gravação, botaram para quebrar. Ficou barato e simples compor, produzir, gravar e, em alguns anos, distribuir.
Só que o grande acontecimento na cultura popular mundial na virada dos 80 para os 90 não foi o grunge, um último suspiro do punk como música, finalmente levado às massas americanas. Foi a explosão da dance music eletrônica, da celebração festiva, psicodélica, pansexual, divertida e independente.
Esta sim foi influente, e seus herdeiros embalam baladas nos clubes underground e informam astros de FM como Britney Spears, Rihanna, Black Eyed Peas e muitos outros. O amigo Camilo Rocha, que sabe tudo do tema, elencou esta semana 50 pérolas da dance music produzidas em 1991, em seu blog Bate-Estaca. Seria impossível chegar ao mesmo número, procurando no rock do mesmo do ano.
É onde estamos em 2011 - vencemos. Qualquer um pode cantar, interpretar, ser engraçado ou relevante, e todo mundo tenta. Não precisamos mais de editoras para sermos autores publicados, nem de gravadoras para bancar e distribuir nossa música, nem de canais de TV para que nosso talento seja revelado.
Está aí a internet - vídeo, blogs, redes sociais, e o turbilhão só vai aumentar. Todos podemos ser heróis, mesmo que apenas por um dia, ou astros, por só quinze segundos. Queimamos rápido como fogos de artifício. Amanhã já tem outra modinha - nada mais velho que o Trending Topic de anteontem. Pequena fama, minúscula fortuna. E de vez em quando o diabo pisca um olho.
Grant Morrison descreve: quando qualquer um pode ser star, é preciso criar superstars, para separarmos nós deles; quando ser superstar está ao alcance de um mané com um laptop, resta elevar os superstars à categoria de seres supremos e inatingíveis - deuses.
E o que são Angelina Jolie, Beyoncé ou David Beckham se não divindades? Depois, Morrison garante, só resta uma última categoria possível - superdeuses, Super Gods, título de sua autobiografia-tese sobre heróis dos quadrinhos.
É boa definição para Kurt Cobain, que habita hoje o etéreo panteão dos eternamente jovens. Mas também é para o vivíssimo Justin Bieber, 17 anos, cupido endiabrado, superstar planetário máximo desde 2010. Justin Bieber tem idade para ser filho de Kurt, que tinha 18 quando fundou o Nirvana. Justin foi descoberto na internet. A mãe postava vídeos do menininho treinando e rebolando.
Foi descoberto e adestrado. Flechou os corações das menininhas menores de idade em todo o mundo. Sua música é anódina, mas mais madura que a de Cobain; não se trata de melodias, mas de atitude.
Bieber é o jovem feliz, ajustado, à vontade com sua sexualidade; Cobain era o adolescente torturado pelas espinhas, com medo de puxar papo com as garotas, um menino até morrer.
Escrevia canções como um menino embirrado - resmungos ininteligíveis, seguidos de arrasadoras explosões de fúria. O bom rock é assim, imaturo. Imagino que Bieber nunca ouviu Nevermind. Nem precisa.
Mas se ouvisse não deixaria marcas, porque nada mais deixa marcas; é tudo igualmente deleitável e deletável. Melhor assim que como antes. Se perdemos um tanto com a evolução - e perdemos - ganhamos mais. Inclusive superdeuses aqui e agora, em ação, entre nós.
Amadurecer exige deixar para trás uns brinquedos queridos. Dói. Esta semana, o R.E.M. informou o encerramento de suas atividades, depois de 31 anos, para choradeira de roqueiros pais de família. Na real? Já foi tarde. Banda tem prazo de validade e uma década já é muito. Turminha é coisa de garoto. Dá pra estender a adolescência até o final dos vinte anos, e 99% do rock que presta foi feito antes do primeiro integrante da banda completar os trinta.
Mas muitas vão se arrastando até a meia-idade e além. Não sabem fazer mais nada, e se está dando grana, por que não? Cada um defende o seu como pode, e todos nós topamos desembolsar uma grana para revisitar este ou aquele pedaço da juventude que se foi. Lá vem Ringo Starr com seu show caça-níquel. Um beatle entre nós? Ingressos esgotados.
Este é o consumidor para a caixa comemorativa de Nevermind que será lançada em alguns dias. Precisa, depois de trinta milhões de cópias vendidas desde 1991? Precisa, porque ainda há carteiras para bater. É um box com cinco CDs e um DVD, US$ 136. Está lá o Nevermind original, acrescido de zilhões de lados B, faixas ao vivo, ensaios, restos de estúdio. É mais que um souvenir, é uma autópsia.
Quando Kurt Cobain se matou, escrevi que ele injustamente negava seu talento aos fãs, que jamais ouviriam novas canções do Nirvana. Errei, e está aí o box para provar. Para quê novidade? Basta escavar os monumentos da banda e reembalar as múmias, para prazer masturbatório de coroas endinheirados e jovens desavisados.
Não estou aqui para ajudar nas vendas. Quando recebi a encomenda do R7 para escrever sobre os vinte anos de Nevermind, reagi: não tenho mais nada a dizer. Mas o portal raramente me sugere algo; e nunca ouvi um pedido para que mudasse uma palavra deste blog. Gratidão é obrigação e prazo é inspiração. Resultado: em vez de tecer uma eulogia, me peguei com ganas de chutar o defunto.
A dura verdade é que Cobain se matou na hora certa. Ia se destruir mais cedo ou mais tarde, fosse por bala, droga ou irrelevância. Sua morte salvou a reputação da banda. A implosão do Nirvana era inevitável. Krist Novoselic era só um baixista, mas a banda continha uma raridade: um baterista com pulso de protagonista.
Dave Grohl era mais chegado ao rock misógino de arena do que às frescuras e obsessões de Kurt Cobain. Dave hoje comanda multidões à frente dos Foo Fighters, fazendo rock musculoso e genérico, sem sinais de inteligência ou sensibilidade.
Com a morte de Kurt, fomos poupados de um Nirvana recheado de músicos contratados. De melancólicas turnês conjuntas com o Hole. De canções crescentemente ensimesmadas e chorosas - com imponderáveis pedras preciosas no meio do entulho. Escapamos de voltas por cima abortadas, do projeto solo esquizofrênico, da autopiedade. Das fotos dos paparazzi, emboscando o quarentão balofo, judiado pelas drogas e tratamentos.
E por fim da manchete: que fim levou Kurt Cobain? Um outro cenário, menos provável: um Kurt Cobain domesticado, produzindo CDs em série, aguando a angústia de seus primeiros anos, homenageado pelas novas gerações, recebendo prêmio no Rock'n'Roll Hall of Fame. Pior ainda.
Vamos esquecer Nevermind, o último prego no caixão do rock. Vamos pregar uma estaca no coração do século 20, que não tem nada mais a oferecer. Vamos assumir nossos superpoderes, enfrentar o presente e celebrar o futuro, que se aproxima à toda velocidade, impacto fulminante e inevitável, nas manchetes dos portais, na crise cósmica do capitalismo, na tempestade perfeita de superpopulação superconectada.
Chega de nostalgia. Nirvana não importa. Perfeita harmonia é perfeita paralisia. Que os mortos enterrem os mortos. Faça você mesmo - faça AGORA.
Marcadores: André Forastieri, Nirvana
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