sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Tonalidades Dicotômicas



Trechos (páginas 40 e 61/62) do livro "Minha Mãe Se Matou Sem Dizer Adeus" dele Evandro Affonso Ferreira:

"Moça muito bonita muito jovem ali na quinta mesa à direita não me olhou várias vezes; sei porque olhei para ela o mesmo tanto que ela não me olhou. Entendo: não há nenhum motivo para que a primavera contemple o outono. Ela amanhece; eu anoiteço. Mesmo não havendo reciprocidade é bom olhar para sua beleza para sua juventude. Flor no pântano. Se ela me olhasse uma única vez lhe diria telepático para se cuidar e que a vida é breve e que ontem mesmo eu tinha a idade dela."
(...)
"Agora minha mãe me ajuda a empinar papagaio cuja linha sai da carretilha improvisada que ela mesma esculpiu. Estamos num terreno descampado. Vento favorável faz subir aos ares o brinquedo de papel. Súbito linha se arrebenta. Nossa pandorga vai aos poucos ocultando-se à vista sem deixar vestígios. Hoje comprovo que o incidente foi deliberado; intencional: mãe-molecagem; mulher-traquinice. Tenho saudade dela. Mais de meio século depois descubro que além de mãe foi também irmão mais velho: brincava comigo de igual para igual. Meu pai ao contrário se mostrava pouco à vontade, não se amoldava bem às travessuras; era desajeitado para a descontração. Segui seus passos: sou introspectivo; melancólico; nublado feito este domingo. Minha mãe era feia bêbada louca; e irônica; e rebelde; e sempre disponível para o riso apesar de chorar muito, motivada pela embriaguez. Vida seria ainda mais pálida sem essas tonalidades dicotômicas."

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