quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

APEDREJE A CAIXA VOCÊ TAMBÉM!

 Eis um trecho da história de Cabelinho, um de meus heróis. A história completa está no conto "O Homem" do livro "O Nome de Deus" do grande Fausto Wolff.
"(...)
Naquela noite jantou com a mulher em silêncio, como sempre. Os filhos, como sempre, estavam na rua. Depois do jantar, foram para a sala ver o telejornal. Cabelinho vociferou:
- Mas esses canalhas não eram comunistas? Não eram contra o regime? Como, agora, enriqueceram e viraram neoliberais?
E pouco depois:
- Mas este cara é presidente da República ou líder da oposição? Nada que se passa na porra deste país é culpa dele? Mentiroso escroto!
Durante a transmissão da novela, quando ouviu uma atriz dizer “Luiz Maurício, papai descobriu que a Roberta transa com a Nina, e disse que vai deserdá-la”, começou a uivar como um lobo e em seguida pegou o aparelho de TV e jogou-o pela janela, enquanto berrava:
- Vai mentir na puta que te pariu!
A mulher dissolveu seis miligramas de Lexotan numa xícara de chá de boldo, e Cabelinho adormeceu. Mas na manhã seguinte, na hora do café, apareceu de cuecas. Ao ver que os dois filhos, um de vinte e um e o outro de vinte e quatro anos, ainda dormiam, começou a dar pontapés na porta do quarto deles:
- Levantem, seus escrotos mentirosos!
Os dois, que se limitavam a estudar na PUC, fumar maconha e usar o carro do pais, se levantaram a contragosto.
- O que é que há, velho?
- Reunião de família. Todo mundo na sala.
Mulher e filhos, em volta da mesa, Cabelinho, lágrimas escorrendo pelo rosto, perguntou:
- Quem são vocês? O que fazem aqui?
A mulher, tentando manter a calma e esconder o medo, respondeu.
- Deixa de bobagens. Sou tua mulher e eles são os teus filhos.
- Que filhos? Não conheço nenhum deles. Quando volto para casa, eles não estão, e quando saio de manhã, estão dormindo. Não conheço esses parasitas.
- Mas…
- Não tem mas nem meio mas. E quem disse que o sujeito tem de casar, ter filhos? Quem disse que a mulher tem de trabalhar e a empregada empregadar? Quem disse que tenho de ser parasitado desde os vinte anos como uma árvore que não pode se defender?
Dito isso, de cuecas como estava, foi até a porta do apartamento e depois de abri-la, ainda chorando, deu um sorriso e disse:
- Adieu!
Fechou a porta atrás de si, tomou o elevador e saiu à rua. Mal pôs os pés na calçada, o edifício onde morava desabou:
- Bem-feito!
No meio do tumulto que se seguiu, no meio dos escombros, ninguém notou aquele homem de cuecas que enchia um saco de aniagem com pedras portuguesas. Saiu andando pela Avenida Copacabana, com o saco nas costas. Como a cueca era uma sunga verde, não chamou a atenção de ninguém até passar em frente a uma agência da Caixa Econômica Federal. Aproveitou que o sinal de trânsito estava fechado, foi até o meio da rua, meteu a mão no saco e começou a jogar pedras contra o prédio, enquanto gritava:
- Mentirosos escrotos, vocês nunca emprestaram dinheiro para pobre algum construir uma casa. Trabalho há mais de 30 anos e nunca recebi um puto emprestado!
O carioca que, segundo os paulistas, acorda mais cedo para ter mais tempo para não fazer nada, aproveitou para dar vazão ao seu espírito crítico:
- É isso mesmo, Cabelinho, taca pedra!
Logo juntou-se ao homem bem-apessoado, de sunga e brilhantina no cabelo, meia dúzia de moleques que passou a apedrejar a agência bancária.
Um camburão levou-o para o distrito mais próximo. O delegado, um senhor baixinho e exceção à regra pois muito gentil, logo percebeu que Cabelinho não era um marginal comum. Mandou que o conduzissem ao seu gabinete, onde ele fez questão de ficar de pé, embora o policial lhe houvesse oferecido uma cadeira.
- O senhor é louco? Fugiu de algum hospício?
- Não sei se sou louco, mas sei que sou um homem.
- Por que jogava pedras contra a Caixa Econômica?
- Primeiro, porque era perto de casa, e segundo, porque foi o modo que encontrei para contestar a realidade mentirosa que vem tentando me afogar desde que nasci.
- E por que anda por aí de sunga?
- Porque sou um homem e quero me mostrar por inteiro. Só não ando nu em respeito às senhoras idosas. O senhor vai me prender?
- Por quê?
- Por ter feito desabar o edifício da Santa Clara, onde morava.
- Ah, foi o senhor o responsável?
- Fui, pois descobri que as estruturas familiares estavam podres e não tomei uma atitude antes.
O delegado, que já sabia ser o responsável pelo desmoronamento do edifício um deputado-engenheiro-ladrão que misturara cuspe, urina e até mesmo cascas de ovo de galinha na preparação do cimento, limitou-se a ordenar que guardassem o Cabelinho numa cela cheia de desgraçados, a maioria pretos e bêbados. Pobres, todos, naturalmente.
Ficou quieto, de pé, num canto da cela, por quase uma hora. Num determinado momento, porém, um negrão parrudo, com mais de 100 quilos, começou a bater num travesti mirradinho que se engraçara com ele. Cabelinho decidiu intervir.
- Pare de bater na moça, seu canalha!
O negrão ficou tão espantado que parou. Cabelinho foi em frente.
- Será que você não sabe, seu escroto, que o cérebro humano é o aparelho mais sofisticado do planeta? Que é capaz de fazer mais ligações num segundo do que todos os sistemas telefônicos do mundo reunidos? O cérebro humano não foi feito para levar porradas!
Mal acabou de falar, o negrão, mais conhecido como Praga de Mãe, e o travesti Charlotte Chanteclair passaram a surrar o Cabelinho - pois em briga de marido e mulher ninguém mete a colher - e só pararam quando ele desmaiou.
À tarde, depois de mandar medicá-lo, o delegado tentou descobrir sua identidade. Como se negasse a informá-la, encaminhou-o ao Hospital Pinel.
- O senhor vai ver, seu Cabelinho, que logo, logo ficará bom.
- Se ficar bom é o que suspeito que seja, prefiro continuar louco. De qualquer modo, muito obrigado, o senhor é um homem de bem.

(...)

Numa sociedade onde o salário mínimo não é suficiente para alimentar um cão por um mês, numa sociedade em que os pobres são tratados como animais e vivem em casas de cachorro, numa sociedade em que o homem é educado para a violência e estratificado na miséria, é espantoso que exista uma gente tão gentil, cortês, educada como a gente carioca. Foram três representantes dessa sociedade que encontraram Cabelinho no terreno baldio. Tantas fizeram que acabaram conseguindo uma ambulância que o levou para o Hospital Souza Aguiar, no Centro da cidade, onde deu entrada com fratura no crânio, o rosto cheio de hematomas, o braço esquerdo e duas costelas quebradas. Ficou em coma por uma semana, entre a vida e a morte. Certa manhã acordou com um braço engessado e a cabeça enfaixada.
Uma voz feminina muito bonita perguntou-lhe:
- Como o senhor está se sentindo?
Cabelinho viu o gesso no braço e passou a mão pela cabeça:
- Aparentemente, mal.
- Quem é o senhor?
Só agora começava a distinguir o rosto da moça: morena, 30 e poucos anos, bons dentes, belo sorriso, olhos brilhantes. De bem com a vida, vestia um avental branco.
- Sou um homem.
- Isso eu sei - respondeu ela sorrindo. - Como é o seu nome?
Cabelinho fez um esforço que chegou a lhe causar dor física, na tentativa de lembrar o nome. Finalmente disse:
- Cabelinho.
- O que é que o senhor faz, senhor Cabelinho?
- Sou o vingador que apedreja. Ou o Anjo Apedrejador, não estou certo.
- O senhor tem família?
- Acho que a minha família morreu quando a estrutura familiar desmoronou. Aliás, na ocasião, morreram várias famílias cujas estruturas também estavam condenadas.
- Compreendo - disse a jovem mulher que não estava compreendendo nada. - Mas me diga uma coisa, quem foi que tentou matá-lo?
- Os asseclas do presidente da República. (...)"

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