terça-feira, 7 de julho de 2009

Havia prometido um trecho do livro SABEDORIA DO NUNCA, do escritor Juliano Garcia Pessanha, à comparsa insone Lilian... então, com algum atraso, aí está:
(...)
Z estava entretido nessas confusões vinculadas à secreta ambição de ser real quando se lembrou que sua mãe havia sumido e que isso devia ter alguma relação com os pensamentos velozes que ele estava tentando pensar. Decidiu que o sumiço da mãe era a constituição de uma ocasião e a hora de uma promissora tentativa de encarnação: a partida da mãe era uma dor e Z acreditava que se ele fosse capaz de experimentar essa dor poderia, então, sair do lado do avesso do mundo e ser ejetado para a parte cheia, onde ele encontraria as dadivosas coerções de uma existência. Tudo teria de ser muito rápido, antes que essa emoção virasse um pensamento, ou virasse uma dúvida do tipo que duvida se realmente uma partida é uma dor, ou se há algo ao menos parecido com isso que chamamos de partida e se isso é capaz de fornecer um estoque suficiente de dor real... Esses disfarces são terríveis e Z não podia ser lento senão tudo virava álgebra, e ele, novamente, fantasma. Sentiu que agora essa falta lhe traria forças, que ele nunca a esqueceria e, vinculando-se a essa dor, poderia ganhar a cobiçada forma humana.
Foi assim que Z se enfiou no banquinho laranja daquele vagão desabitado e começou a preenchê-lo de uma dor violenta até que se envaideceu com a idéia de que agora ele teria memórias e uma vida triste para dizer aos outros. Esse pensamento foi um bocado fatal, pois ele fez com que Z abandonasse o vagão e saísse pela rua em busca de um interlocutor a quem pudesse narrar o seu episódio humano. Z considerou-se capaz de recapitular e por isso logo encontrou alguém no meio de uma calçada e começou a falar por alguns segundos até que foi vendo suas palavras se desmancharem e o rosto de alguém ficar longínquo. Z estava confiante nos vigores da sua história e na força de seu relato, mas, logo no início, na inusitada adesão àquela nova lembrança, ele foi sacudido pelo anjo da descrença: devorou seus relatos, desfez seus pequenos preenchimentos e o pôs de volta ao zero, na província do esvaziamento. Tudo era de novo o velho fingimento e Z tentou então imitar os gestos do homem antes que ele lhe desse as costas. O homem achou divertido aquele pequeno palhaço e convidou-o para tomar algumas cervejas ao que Z respondeu convidando-o para tomar algumas cervejas. Z se referia às mesmas cervejas do homem de tal modo que esse se esquivou do encontro por julgá-lo "matematicamente insuportável". Pelo menos foi o que Z imaginou assim que ficou sozinho e sentiu uma aflição apoderar-se dele. Talvez fosse aquele fracasso, mas logo a aflição também sumiu, afinal, nunca uma delas havia se apoderado de Z sem que ele sentisse o rondar de uma mentira. Z se despediu do homem, já minutos depois dele ter partido, e constatou que suas lembranças recém-adquiridas já haviam ficado bizarras e que suas vivências eram bastante falsas.
(...)
*Trecho do livro SABEDORIA DO NUNCA, de Juliano Garcia Pessanha.

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1 Comentários:

Blogger Lílian Alcântara disse...

Gostei da forma de escrita do Juliano G. Pessanha, e tive até curiosidade pelo livro. Porém, eu que doto da mesma 'forma' de escrita, creio que um livro integralmente neste ritmo pode ser um pouco cansativo. Mas vou reler outras vezes com cada vez mais atenção...

7 de julho de 2009 às 13:33  

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